Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade. (II Coríntios 13,8)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Sermão de Todos os Santos (8 de 11)

VIII

Por remate, ou por coroa de todos os santos, põe a Igreja no último lugar o suavíssimo coro das Virgens, cujas vozes, posto que mais delicadas, mas igualmente fortes, nos acabarão de persuadir, como elas se persuadiram, esta mesma verdade. Pesa-me de chegar tão tarde a esta hierarquia, em que é obrigação deter-me mais um pouco; mas como a matéria é de casa, ao menos das grades para dentro será de agrado. Aos de fora seja embora de paciência.

Que extremos não obraram as santas virgens por ser santas? Que façanhas não empreenderam varonilmente? Que rigores e asperezas não executaram em si mesmas? Que galas, que regalos, que delícias e contentamentos da vida, que riquezas, que grandezas, que pompas e fortunas do mundo não desprezaram? Que finezas, que excessos, que máquinas dos que as pretendiam, não resistiram? Que bodas humanas, por altas e soberanas que fossem, não renunciaram, só por conservar e defender a virginal pureza, e manter a fé prometida a Cristo, com quem se tinham desposado? Santa Edita, filha de Elgaro, rei de Inglaterra, morto o pai e um irmão que tinha único, ficou herdeira do reino, e por mais instâncias que lhe fizeram os povos, juntos em cortes, que se casasse, nem o amor da casa real em que nascera, nem a sucessão da família e da coroa, nem a memória do pai e irmão, que nela se extinguia, foram bastantes para a mover um ponto da firmeza de seu propósito, nem para a arrancar do canto de uma religião, onde, coberta de cilício, amortalhou a vida e, depois, sepultou o corpo, que permaneceu incorrupto. Santa Eufrosina, senhora ilustríssima em Alexandria, não podendo de outro modo fugir e escapar de seu pai e do matrimônio nobilíssimo concertado por ele, mudando o trajo de mulher e o nome, e chamando-se Esmaragdo, desconhecida e em terra estranha, tomou o hábito de monge, em que viveu trinta e oito anos enterrada em uma estreita cela, donde nunca saiu. Santa Petronila, filha do Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro — antes de ser chamado ao apostolado — tendo feito voto a Cristo, de perpétua virgindade, e não se podendo defender das bodas de Flaco, senhor romano, que com amor a solicitava, e com poder de armas a queria obrigar a ser sua esposa, pediu de prazo três dias para deliberar, e neles, com ferventíssimas orações, impetrou do mesmo Cristo lhe tirasse a vida, e assim o conseguiu valorosa e gloriosamente no fim do terceiro dia. Mais violentamente se defendeu de semelhante perigo Santa Maxelende, ilustríssima por sangue nos Estados de Flandres, mas mais ilustre pela causa de o haver derramado. Celebraram-se com grande pompa as festas das bodas concertadas por seus pais com Harduíno, senhor principal, rico e poderoso, que, entre muitos que pretendiam esta fortuna, a tinha alcançado. Foi levada por força a santa virgem às mesmas festas, mas negou a mão com tal desengano, e persistiu nele com tal firmeza que, afrontado e corrido o esposo de se ver desprezado, trocando o amor em fúria, se arremessou à espada, e a santa se deixou matar intrepidamente.

E posto que em tantos e tão apertados casos fosse admirável o valor e constância com que todas estas santas defenderam a pureza virginal que tinham prometido a Cristo, considerada porém a condição natural de mulheres, ainda tenho por maior façanha a de Santa Brígida Virgem, chamada a de Escócia, e a de Santa Uvilgo Fortis, que alguns, com errado mas bem apropriado nome, chamam Virgo fortis. Eram estas santas o extremo da formosura, e vendo-se por esta causa solicitadas e pretendidas de muitos e poderosos senhores para o matrimônio, pediram a seu divino Esposo as privasse daquela graça, que outras tanto estimam e com tantas artes afetam; e o Senhor, que só se namora da beleza da alma, se agradou tanto desta petição, que de repente ficaram tão feias e disformes, que ninguém as podia ver, e só elas se viam contentes.

Que direi dos rigores, asperezas e piedosas tiranias com que estes anjos em carne a mortificavam, afligiam, e verdadeiramente martirizavam? A austeridade de vida, o rigor e horror das penitências de Santa Clara, primeira cópia do retrato original de Cristo crucificado, seu padre, São Francisco, quem há que a possa declarar? A de Santa Azela, virgem romana, dentro em Roma, e quando Roma era o maior teatro das delícias e vaidades do mundo, declarou S. Jerônimo. Diz que da mais populosa cidade fez ermo; que a terra nua lhe servia de cama e de lugar de oração; que os joelhos, pela muita continuação dela, se lhe tinham endurecido em calos como de camelo; que se sustentava do jejum, e que só o quebrava com pão e água, mas com tal moderação e parcimônia, que nunca, nem com pão matava a fome, nem com água a sede; que jamais viu nem foi vista de homem, ainda quando visitava os sepulcros dos mártires, e que tendo uma irmã também donzela, esta a amava, mas não a via. Santa Margarida, filha dos reis de Hungria, de quatro anos tomou o hábito de monja, e de cinco se vestiu de cilício; de dia, para mortificar os passos, entre os pés e o calçado, metia certos abrolhos de ferro, e de noite, para o pouco sono que tomava sobre uma tábua, se cingia de peles de ouriços com todos seus espinhos. Santa Genoveva, padroeira da real cidade de Paris, a quem o famosíssimo Simeão Estilita desde a Grécia, onde vivia sobre a sua coluna, mandava visitar a França e encomendar-se em suas orações Santa Macrina, irmã de S. Basílio Magno, tanto no sangue como na aspereza e severidade da vida. Santa Lutgardis, legítima filha do gloriosíssimo patriarca S. Bernardo, singular herdeira de seu ardentíssimo espírito, e digníssimo exemplar de todas as que vestem e professam o mesmo hábito. Estas santas virgens, e muitas outras, que extraordinários modos de penitências não inventaram, mais engenhosas para se martirizar a si mesmas, que os tiranos para atormentar os mártires?

É coisa digna de admiração que, padecendo os mártires pela fé e culto de Cristo, os tiranos não dessem em executar neles os mesmos tormentos da Paixão de Cristo; mas isto inventou e executou em Santa Catarina de Sena e em Santa Clara de Monte Falco o amor de seu divino Esposo. Catarina, com as chagas nas mãos, nos pés e no lado, e a coroa de espinhos na cabeça, e Clara, com todos os instrumentos da mesma Paixão do Senhor insculpidos e entalhados no coração. Até as doenças mais penosas provocavam e conseguiam, para que onde não podiam chegar as dores fabricadas da arte, penetrasse as da natureza, e não houvesse em corpos tão delicados parte alguma, dentro nem fora dos ossos, que não penasse com particular tormento. Todas as enfermidades de quantas é capaz o corpo humano, padeceu juntamente e por toda a vida, Santa Lidovina, com excesso da paciência de Jó, e afronta da indústria do demônio. Uma Cristina houve, entre as outras que, não se satisfazendo das penas desta vida, padeceu as do purgatório por muitos anos, como também Santa Teresa experimentou as do inferno. A mesma Santa Teresa dizia: Aut pati, aut mori: ou padecer, ou morrer, porque se não atrevia a viver sem padecer. E Santa Madalena de Pazzi, não sei se com maior energia: Pati, non mori: padecer sim, morrer não, porque na morte acaba-se o exercício de padecer, e na vida dura e persevera. Mas dizei-me, virgens puríssimas — ou dizei-o aos que o não sabem entender — por que fostes tão ambiciosas de penas? A vossa vida não era inculpável e inocente? As vossas almas não eram gratíssimas a Deus? Pois, porque sois tão inimigas ou tão tiranas de vossos corpos? Deixai esses rigores e essas penitências para as Teodoras e Pelágias, que foram grandes pecadoras; deixai-as para uma Maria Egipcíaca, que viveu dezessete anos em torpezas, enlaçada do demônio e sendo laço dos homens; mas vós, que não tendes pecados graves que pagar, e se alguns tivestes leves, os tendes tão abundantemente satisfeito, por que vos mortificais, por que vos afligis, por que vos martirizais com tanto excesso? Porque sabiam quão grande coisa era ser santas, e o queriam ser mais e mais.

Nenhum comentário:

Seja Bem-Vindo(a) ao Blog do Grupo de Estudo Veritas !

Contra a verdade não temos poder algum; temo-lo apenas em prol da verdade.(II Coríntios 13,8)